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sexta-feira, 6 de setembro de 2019

A origem da devoção a Nossa Senhora dos Milagres na freguesia da Serreta ilha Terceira Açores remonta aos finais do século XVII


A freguesia da Serreta é palco de um dos mais populares cultos católicos dos Açores, nela se realizando uma peregrinação que atrai anualmente cerca de 10 000 fiéis que a partir de todos os pontos da ilha Terceira para ali se dirigem a pé, em longas caminhadas que em geral se prolongam pela noite dentro.

A peregrinação realiza-se na sexta-feira e sábado anteriores ao domingo da festa da Serreta, o qual corresponde ao segundo domingo do mês de Setembro, excepto quando calhe no dia 8 daquele mês, coincidência que obriga ao adiamento da festa para o domingo imediato. Esta regra destina-se a impedir que a festa da Serreta coincida com a festividade em louvor da Senhora do Livramento de Angra, outrora também promovida pelos fidalgos angrenses que tinham à sua conta a festa da Serreta. E embora os elementos promotores das duas celebrações há muito já não sejam os mesmos, o uso conservou-se.


No domingo realiza-se uma procissão, a qual ainda mantém o brilho tradicional, atraindo milhares de forasteiros. Na segunda-feira imediata realiza-se a famosa toirada da praça do Pico da Serreta, tão concorrida que o dia é considerado feriado não oficial em toda a ilha, com tolerância de ponto concedida nas escolas e ao funcionalismo público.


As origens da devoção à Senhora dos Milagres


A origem da devoção a Nossa Senhora dos Milagres remonta aos finais do século XVII, quando o padre Isidro Fagundes Machado (1651–1701)  se considerou vítima de injusta perseguição e se refugiou no local chamado Queimado, no território da actual Serreta. Naquele local, então dos mais remotos da ilha, construiu por suas mãos, em cumprimento de um voto, uma pequena ermida dedicada Nossa Senhora, na qual colocou uma pequena imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus (a actual imagem de Nossa Senhora dos Milagres).  Pedro de Merelim dá a seguinte versão da lenda que passou a rodear a origem do culto:


Um padre velhinho, boa e santa alma, vendo-se em grande atribulação e desiludido do mundo, procurou um lugar ermo, onde, sem mais ninguém, se pudesse entregar à contemplação das verdades eternas. Seduziu-o a Serreta, junta da rocha, a um boa légua da igreja. Sítio tranquilo e pitoresco, paisagens de arvoredos e fragas, bem próprio para escutar as vozes da natureza entoando um hino à criação – e aí se quedou. Estaríamos no século XVI. Levava consigo uma pequena imagem da Virgem, para a qual, por suas mãos, imperitas no ofício, edificou tosca capelinha, na Canada das Vinhas, Queimado, em reconhecimento do milagre que lhe fizera de o livrar do perigo. E o minúsculo templo serviu-lhe também de abrigo. As preclaras virtudes do venerando sacerdote tiveram o condão de, ao lugar da Serreta, levar subido número de pessoas. Morto o humilde e solitário clérigo, a singela ermidinha ficou abandonada, breve se arruinando. Outra se ergueu em local diferente. E esta segunda, igualmente carecida de assistência, além de sujeita às irreverências de alguns pseudo-romeiros, não terá oferecido por muito tempo as condições indispensáveis ao culto, pelo que o prelado mandou recolher a imagem da Senhora dos Milagres à paroquial de Doze Ribeiras.



A fama de santidade que passou a rodear o padre eremita e a localização remota da ermida, associada à beleza da localidade, passou a atrair ali numerosos romeiros.
Falecido o padre Isidro Fagundes Machado, a ermida ficou ao abandono, passando a ser palco de acções menos conformes à ortodoxia católica protagonizadas pelos romeiros que ali continuaram a afluir. Em consequência, foi ordenada a recolha da pequena imagem de Nossa Senhora para a Igreja de São Jorge das Doze Ribeiras, então sede de um curato da freguesia de Santa Bárbara que incluía o território da actual freguesia da Serreta.

Instalada na igreja das Doze Ribeiras, a imagem continuou a atrair considerável culto, passando a ser designada como Nossa Senhora dos Milagres em resultado dos milagres que eram atribuídos à sua intercessão.


O culto sofreu forte incremento quando a zona oeste da ilha Terceira passou a ser utilizada, dada a altitude e a beleza da paisagem, como destino de veraneio da aristocracia angrense. A fama de que aquela zona de montanha da ilha tinha ares salubres, capazes de curar a tísica e de evitar os miasmas dos meses mais quentes, levou a que a partir de meados do século XVIII fosse comum, durante algumas semanas de Verão, a presença nas Doze Ribeiras e Serreta de membros da aristocracia angrense em veraneio ou em cura de ares. Esta situação levou a que o culto da Senhora dos Milagres encontrasse importantes patronos entre os veraneantes, os quais foram progressivamente assumindo a organização da respectiva festa.


A institucionalização do culto teve origem num voto feito em 1762, quando em resultado de uma comunicação oficial  informando que tropas franco-espanholas tinham entrado em Portugal (dando origem à Guerra Fantástica) o medo de uma invasão militar se espalhou pela ilha. Pouco depois, um grupo de cavalheiros, militares, eclesiásticos, autoridades e algumas damas fez voto solene na Igreja de São Jorge das Doze Ribeiras de se tornarem escravos de Nossa Senhora dos Milagres se a ilha não sofresse qualquer investida militar estrangeira. O voto incluía a formação de uma irmandade e a obrigação de promoverem uma festa anual em honra da senhora dos Milagres.

A Irmandade dos Escravos de Nossa Senhora


Terminadas as hostilidades da Guerra Fantástica sem que a ilha sofresse qualquer arremetida, os subscritores do voto de 1762 reuniram-se novamente na Igreja das Doze Ribeiras e em acto solene realizado a 11 de Setembro de 1764 fundaram a Irmandade dos Escravos de Nossa Senhora. Esta foi também a data da primeira solenidade em honra da Senhora dos Milagres.

Entre os fundadores estava o capitão-mor de Angra, José de Bettencourt, um dos principais destes devotos, representado depois por seu filho, brigadeiro Vital de Bettencourt, que por escritura de 30 de Agosto de 1842 viria a doar 4$000 réis anuais para património da nova igreja da Serreta. Os restantes membros pertenciam à melhor nobreza angrense, não havendo participação do povo local, então entre os mais pobres da ilha.


Esta Irmandade dos Escravos de Nossa Senhora, entretanto desaparecida, teve um papel fulcral no desenvolvimento do culto e na formação da freguesia da Serreta, já que foi também esta Irmandade que assumiu o compromisso de construir uma igreja no lugar da Serreta onde existira a ermida do Queimado.




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